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Quando a torcida deve ir à luta


3 de janeiro de 2009

Daniel M. Delfino

No dia 13 de outubro de 2007 comemoraram-se os 30 anos da histórica conquista do Campeonato Paulista de 1977 pelo Corinthians, numa final contra a Ponte Preta. Era o primeiro título oficial depois de uma longa fila de 23 anos, desde o lendário Campeonato do IV Centenário de São Paulo, de 1954.

Nesses 30 anos entre 77 e 2007, o Corinthians conquistou 10 Campeonatos Paulistas (que somaram-se aos 15 anteriores para fazer do clube o maior vencedor da competição), 2 Copas do Brasil, 4 Brasileiros e 1 Mundial. Ou seja, os últimos 30 anos, ou mais especificamente os últimos 15, foram o período mais vitorioso da história do clube, quando se acumularam mais e mais importantes títulos do que em toda a vida precedente da agremiação. Se já era um dos clubes mais tradicionais e dono da 2ª maior torcida do país, o Corinthians tornou-se também um dos mais vitoriosos.

Entretanto, os torcedores que estiveram no Pacaembu na tarde de 13 de outubro de 2007 para a comemoração dos 30 anos e para o jogo contra o Internacional/RS pelo Brasileiro do ano passado não estavam vislumbrando a possibilidade de novas conquistas e sim, ao contrário, angustiados com a ameaça de rebaixamento do time para a 2ª divisão nacional. O rebaixamento acabou se concretizando, ao fim do certame, em dezembro, não sem antes expor a nação corintiana ao vexame de ver o presidente do clube afastado em meio a um escândalo policial. As investigações da justiça sobre a origem do dinheiro que a então parceira MSI investia esbarraram em lavagem de divisas do crime organizado internacional, especificamente da máfia russa, de quem a MSI seria fachada.

Na esteira dos escândalos e do afastamento da direção, organizaram-se às pressas eleições para uma nova diretoria, ao final das quais os remanescentes do mesmo grupo dirigente permaneceram no comando, tornando-se depositários duvidosos da complicada tarefa de recolocar o clube no caminho das conquistas.

A lembrança do título de 1977 é fundamental porque nos leva a um passado não tão distante, em que era possível um time ficar 23 anos sem ganhar um campeonato importante, e mesmo assim ver sua torcida crescer ao invés de diminuir. Esse fenômeno paradoxal merece uma explicação sociológica.

A torcida do Corinthians é a 2ª maior do país, mas está fortemente concentrada no Estado de São Paulo e em especial na região metropolitana da capital. O crescimento da torcida esteve indissoluvelmente ligado ao próprio crescimento da metrópole paulistana nas décadas de 1950, 60 e 70, período de forte urbanização e industrialização, e que coincide com boa parte da fila corintiana.

Naquelas décadas, trabalhadores de todas as partes do país e em especial do Nordeste emigravam em massa para São Paulo. Ao estabelecer-se, incorporavam juntamente com outros caracteres da sociabilização proletária o hábito de torcer para o Corinthians, time fundado por operários em 1910. Nada mais natural para essa população sem terra, sem teto, favelada, lutadora, do que torcer para um time sem teto, já que o Corinthians não tem estádio. Torcer para um time que não é campeão é uma expressão peculiar de uma certa atitude geral perante a vida, um espírito de luta, de irmandade na dificuldade, de alegria na tristeza. O corintiano se define como maloqueiro e sofredor graças a Deus. Os adversários, naturalmente, não compreendem esse elogio da condição de sofredor, e zombam dela como se se tratasse de uma apologia da derrota. Falta-lhes o nexo que nos corintianos liga a atitude perante o futebol à atitude perante os companheiros de torcida, de bairro, de vivência, e porque não, de classe.

Diz-se que o Corinthians não é um time que tem uma torcida, mas uma torcida que tem um time. Diz-se que essa torcida vai a campo mais para festejar a si mesma do que ao jogo. Diz-se que a torcida corintiana é o 12º jogador e que praticamente entra em campo para empurrar o time. Não é à toa que ficou conhecida como fiel torcida (fidelidade atestada por feitos surreais como a inacreditável invasão do Maracanã em 1976). Todos esses ditos são verdadeiros, embora sua origem esteja ligada a um passado mais romântico do futebol. Hoje praticamente todas as torcidas são iguais, todas tem suas facções organizadas, seus gritos de guerra para empurrar o time, suas escolas de samba, etc., embora ainda caiba à fiel o inquestionável mérito da originalidade e da autenticidade.

A originalidade corintiana e sua identidade proletária manifestaram-se não só no fenômeno extraordinário e paradoxal do crescimento num período de jejum de títulos, mas também no excepcional movimento da democracia corintiana, no início dos anos 1980. Naquela quadra histórica, em que se vivia o fim da ditadura, o proletariado brasileiro protagonizou um dos maiores ascensos de sua história, desencadeando um forte ciclo de lutas sociais e construindo fortes organismos de massas, como o PT e a CUT.

Não há é claro uma relação direta e automática entre identidade de classe, mobilização política e opção futebolística (ou seja, nem sempre proletário e corintiano é sinônimo de grevista). Entretanto, alguma relação existe, pois somente isso pode explicar a coincidência temporal entre as lutas operárias e a democracia corintiana. Nessa experiência sui generis promovida por uma geração de jogadores talentosos, vitoriosos e engajados, implantaram-se práticas coletivas auto-gestionárias e libertárias jamais vistas no futebol, como a decisão sobre contratações, regime de treinamentos, abolição das concentrações, valorização da responsabilidade e da autonomia dos jogadores; práticas que apontavam um modelo para o conjunto da sociedade, que então clamava por democracia. Trata-se do mais importante movimento político da história do futebol brasileiro e um dos mais importantes do mundo.

Também não é coincidência o fato de que os dirigentes do ciclo de lutas da década de 80 (ou seja, o PT) estejam hoje servindo como prepostos do capital financeiro internacional e conduzindo a espoliação do país na nova divisão do trabalho internacional da fase globalizada do imperialismo; assim como os dirigentes do Corinthians fizeram do clube um balcão de negócios do futebol globalizado e suas máfias de empresários e investidores.

É evidente que o rebaixamento não é o fim do mundo para um clube da grandeza do Corinthians, que certamente voltará a vencer. Mas o episódio serve como um exemplo eloqüente da falência de um certo modelo de gestão do futebol. O personalismo, a perpetuação de dirigentes, a falta de transparência, a caixa preta das finanças, os contratos nebulosos envolvendo empresários de jogadores, intermediários, publicitários e todos os tipos de parasitas; tudo isso precisa ser superado para que o Corinthians tenha não apenas uma mera troca de nomes dos dirigentes, mas uma mudança estrutural na sua administração. Por isso propomos:

 

  1. Afastamento imediato de todos os dirigentes comprometidos com os atos criminosos da gestão anterior;
  2. Auditoria externa independente em todas as contas, contratos e departamentos do clube e responsabilização criminal e patrimonial dos culpados pelas irregularidades encontradas;
  3. Eleições diretas para a direitoria, com o direito de votar e ser votado estendido a todos os sócios;

O caso do Corinthians não é uma exceção; na verdade o modelo falido de administração do alvinegro é a regra entre os grandes clubes do Brasil. Por isso, esses pontos de programa são aplicáveis a todos os clubes, federações e confederações do futebol e do esporte brasileiro em geral. Em função de seu enorme potencial de atrair a atenção das massas, o esporte e especialmente o futebol brasileiro tem sido mantidos sob controle de indivíduos e grupos oligárquicos, autoritários, corruptos, mafiosos, que enriquecem às custas da paixão popular.

A administração predatória e irresponsável desses dirigentes colabora para o enfraquecimento do futebol brasileiro, o êxodo dos atletas, o esvaziamento dos campeonatos, a descaracterização da seleção nacional, a queda do nível técnico, a diminuição do público, o sucateamento dos estádios (da qual o maior exemplo foi a morte de 7 torcedores no estádio da Fonte Nova, em Salvador, em 25/11/07, no que deveria ter sido a festa pelo acesso do Bahia à 2ª divisão), etc.

Ao invés de enfrentar-se com esse modelo, o governo Lula optou por dar-lhe sobrevida (como de resto fez com todos os demais aspectos do atraso brasileiro). Acaba de ser aprovada a Timemania, loteria que vai injetar uma fortuna prevista em R$ 114 milhões (segundo O Globo online, matéria de 19/02/08) nos clubes brasileiros. Esse rio de dinheiro vai ser entregue aos clubes como forma de facilitar a quitação de dívidas fiscais e previdenciárias, sem que se exija deles nenhuma contrapartida real em termos de afastamento e responsabilização criminal e patrimonial dos culpados pelo descalabro em que se encontram, de transparência administrativa e financeira, reorganização e democratização interna, renovação completa dos atuais quadros dirigentes, etc. Trata-se de mais uma conciliação do governo Lula com um dos setores mais incompetentes, predatórios, corruptos, autoritários e reacionários do país, em troca do apoio venal da bancada da bola.

Com uma administração desse quilate é inconcebível que o Brasil tenha sido escolhido para sediar o evento máximo do futebol, a Copa do Mundo de 2014. Está armado o cenário para mais manipulação da paixão popular, mais ufanismo oportunista dos políticos e parasitas, mais chauvinismo e também mais tramóias, corrupção, repressão (como a que os moradores de favelas do Rio experimentaram na época do Pan) e tragédias.

Sem as necessárias mudanças estruturais no futebol e na sociedade, a Copa de 2014 tem tudo para ser a apoteose do pão e circo para as massas. A menos que as torcidas deixem de ser espectadoras passivas do espetáculo político e entrem de vez no campo da luta social.

Fora do futebol os falsos dirigentes, os aproveitadores, os sanguessugas, os empresários, os corruptos, os ladrões, os mafiosos, os criminosos!

Salve(m) o Corinthians!

 

Daniel M. Delfino (trabalhador, estudante, militante e corintiano roxo)

28/01/2008